segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Quando a Música Acabar



"Music is my only friend /
until the end..."

Jim Morrison



O vento rugia agora com mais força pela vila arruinada. A música não se ouvia por entre os gritos dementes do vendaval. Durante anos destruíra tudo o que era frágil. Agora alisava as arestas. O castelo resistia ainda e o branco caiado das casas era um lamentoso convite a que os seus habitantes regressassem. O violinista sabia que tinha perdido. Guardou cuidadosamente o seu instrumento ancião e afastou-se da povoação em ruínas. O vento gritou a sua vitória por entre vielas solitárias, pátios nus e ruas abandonadas.

Abandonou a vila a passos largos e apressados seguindo pela estrada em comida pelo tempo. A estrada feita de uma espécie de pedra negra e derretida, que o violinista não compreendia como fora feita. Aqui e ali, uma azinheira ou outra árvore furava a estrada. Contava-se na aldeia que os seus antepassados conduziam por ali carroças sem bois ou cavalos, a velocidades desmedidas. Isso, segundo os velhos da aldeia, fora antes dos homens terem solto sobre a terra grandes nuvens-monstros aos quais chamavam precipitação e que em alguns lugares ainda matavam quem por lá passasse com terríveis queimaduras.

Meditava, como fazia muitas vezes, sobre estes estranhos antepassados quando viu a casa solitária. Era grande, branca, com barras azuis já muito comidas pelo tempo e uma grande chaminé caída. Depois de a observar bem resolveu entrar. Fê-lo cuidadosamente pois muitos eram os perigos que se escondiam naqueles lugares desertos. O interior estava vazio, com a excepção do lixo que o vento ou pequenos animais tinham trazido. Deu alguns passos num dos compartimentos e sentiu o chão de madeira apodrecida fugir-lhe debaixo dos pés. Tomou-se de um enorme medo quando descobriu que tinha caído numa cave. As caves eram mais perigosas do que tudo o resto. Havia luminosidade suficiente para que, observando cuidadosamente visse as silhuetas de máquinas num dos cantos da cave. Quando finalmente a curiosidade substituiu o medo atreveu-se a explorar os aparelhos com umas mãos trémulas.

O botão esperara quase dois séculos que o acordassem. A pilha a que estava ligado guardara ciosamente os seus electrões aguardando o chamamento. Foram as mãos desastradas do violinista que accionaram o botão. Saltou para trás quando o prato começou a rodar e a pequena serpente de metal se ergueu, moveu-se suavemente pousou nele. Então aconteceu. A Primavera encheu a cave. Cinquenta e dois violinos inundaram e aspergiram o violinista. Quando o Verão substituiu a efémera Primavera o violinista chorava.

Depressa aprendeu a colocar o disco de plástico onde tinham prendido a música, e já uma fogueira iluminava a cave quando o violinista pegou no seu violino. Durante dois dias seguidos arranhou e tocou. Tocou e arranhou sem descanso até conseguir acompanhar os violinos encarcerados naquela máquina. Comeu o que restava das suas provisões e depois quase sem pensar dirigiu-se mais uma vez para a vila. Seguiu de novo a velha estrada e adormeceu enquanto caminhava. Sonhou com a amada que deixara na sua aldeia quando decidira procurar músicas pelo mundo. Sonhou com o seu pai que lhe deixara o violino que era um dos tesouros da aldeia. Sonhou com os antigos e com a loucura que os fizera perderem-se. Quando acordou estava perto da vila branca que se estendia por uma colina perto do rio. O vento, seu senhor, estava mais violento, mais louco do que antes. Ria-se maldoso pelas ruas, empurrava o adobe das paredes descascadas das casas e arrancava o que restava dos telhados. O violinista entrou.

Estava tão fatigado que deixou vento empurrá-lo pela ruas até chegar a uma praça. Sentou-se na base de uma fonte seca, com oito colunas e rasgada e pegou vagarosamente no violino. As suas mãos cansadas firmaram-se. O Outono gemeu nas mãos do violinista e o vento respondeu com assobios e gritos que viajavam pelas travessas, ruelas e escadarias. Sons perdidos nas casas acordavam agora para combater o homem e o seu instrumento. Encontraram o Inverno, que nas mãos do músico chamou tempestades e relâmpagos, antigas chuvas e neves suaves. Digladiaram-se dias e noites. Nasceram flores naquela vila fantasma, colheram-se frutos amadurecidos pelo sol, chuvas outonais brindaram os pátios da povoação e a fonte gelou com o frio de Dezembro. Já o terceiro dia se escondia atrás do manto da noite quando o vento derrotado fugiu da vila, gritando injúrias ao homem e aos seus aliados. O violinista largou o seu instrumento e sentiu-se morrer. Desejou sonhar com a sua amada enquanto perecia e assim aconteceu. O violino escorregou-lhe das pernas e pousou num tufo de ervas improvável, que ali crescera. Os bichos, que temiam a vila, vieram com suavidade, exploraram e finalmente acabaram por se deliciar com o violinista.

O violino ainda lá está. Flores começaram já a rodeá-lo, acariciando-o com ternura. O vento nunca mais voltou à vila. Apenas de quando em quando surge uma brisa doce que tange as suas cordas numa interrogação de saudade.

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