domingo, 18 de outubro de 2009

Olha Longe






Acordou com o sol. Olha Longe estava assente na areia. Esperava-­o, como fazia todos os dias. Já fora de casa espreguiçou-se. As redes, lavadas na noite anterior, dançavam ao vento fresco da manhã. Virou o seu olhar para o mar. O gigante estava calmo. Era assim que o tratava. O gigante. Amava-o, mas respeitava-o ainda mais. Já lhe tinha levado o pai e dois irmãos. Mas era justo que assim fosse. Era o preço a pagar por lhe ir buscar o alimento às entranhas.
A areia estava fria e acariciava-lhe os tornozelos. De manhã todas as coisas lhe tocavam com mais intensidade. Dormira como um justo e deixara a sua mulher ainda a dormir. Desde o dia em que ela tinha vindo para sua casa que assim era. Saía sempre antes dela acordar. Era a mais bonita e a mais dura das mulheres da aldeia. "Não quero mourejar" tinha-lhe ela dito quando a desposara. "Não quero ser escrava do trabalho nem ficar feia e má muito cedo". E ele concordara. "E não quero que o mar te leve e me deixe amarga ainda jovem". Ele sorrira. "Enquanto tiver o Olha Longe nada tens a temer". Acreditara, como acreditava sempre em tudo o que se referisse ao Olha Longe. Todos os dias, quando ele voltava da faina, os músculos quebrados dos remos, das redes e dos aparelhos, e com a ajuda dos seus irmãos puxava o barco para o areal, ela agradecia ao Olha Longe terem regressado incólumes. Antes mesmo de ver a pescaria que tinham feito. E era um homem feliz, concluiu ele enquanto observava o sol a erguer-se por cima das montanhas e iluminar as linhas do seu barco.
O seu barco! Era um barco morto, quando o encontrara, ele mesmo ainda um miúdo. Mas gostara logo dele. Quando voltava com o pai e os irmãos da pesca, ia arranjá-lo assim que ficava livre. Os músculos moídos da faina e a chacota de toda a aldeia não o demoveram. Com o tempo, a arte com que o reconstruía foi reconhecida e ficavam a olhá-lo enquanto o arranjava. Até a sua mulher, naquela altura uma pintainha de palmo e meio. E fora ela que selara o elo que o ligava ao barco. Tinha dito, meio para lhe agradar, meio por intuição: "Parece que está vivo, só lhe faltam os olhos". E ele cismara naquilo. Quando o barco ficou pronto, pintou-lhe dois olhos grandes, que miravam o infinito, castanhos como os da sua mulher, e sábios, muito sábios. Sorriu. Lembrava-se de quando ela vira os olhos pintados na proa como se tivesse sido ontem. Andara muito tempo à volta do barco olhando-o como a um bicho que ali pousara. Riu-se, abanou a cabeça com a recordação e foi tratar das redes. Era necessário dobrá-las e metê-las no Olha Longe. O seu irmão e o cunhado deviam estar a chegar e era preciso arrear o barco.
Atirou as redes para o barco como fizera da primeira vez. Da primeira vez... Tinha-o arranjado, não era? Fora o que dissera ao pai. "Vou-me fazer ao mar nele. É o meu barco". E o pai dissera-lhe que fosse sozinho. E foi. E a pescaria que fizera!.. Parecia que estavam à espera que os apanhasse, os malditos dos peixes. Estava eufórico quando voltara. Queria mostrar a todos a sorte que o seu Olha Longe lhe trazia. Queria mostrar ao seu pai... E quando chegou todos o aclamaram. Mas o seu pai tinha ido para o mar com os seus dois irmãos. Encolhera os ombros e fôra tratar de vender o peixe.
A tarde foi passando e a festa deu lugar à apreensão. E a apreensão deu lugar à dor, quando a sua mãe se sentou à beira-mar esperando pela silhueta do barco. E um frio subiu-lhe espinha acima. Porque ele não fora no barco do seu pai e por isso a tragédia caíra sobre eles. Via nos olhos de toda a gente a sombra da acusação que ninguém fazia. Resolveu fazer-se ao mar outra vez para procurar o seu pai e irmãos.
"Onde vais tu, rapaz?" "Vou procurar o pai, mãe". E ela apontara para o céu com a dor estampada na cara. "Ó raios de rapaz, não vês o que vai cair sobre nós?" E ele olhara o céu. Estava negro de ameaças. "Vou buscá-los, mãe. Devia ter ido com eles..." Ela olhara-o com aqueles olhos de mãe conhecedora. "E é isso que te rói? Pois ouçam-me todos..." E erguera a voz para que todos ouvissem. "Ainda bem que este meu filho não foi, porque prefiro chorar três a quatro. E tu não me sais daqui". E prendera-o a ela, da única forma que uma mãe pode prender uma cria crescida que quer partir. Com a astúcia dos anos.
Foi a mais longa noite da sua vida. Sentados na praia, iluminados apenas pelos trovões, ele, a mãe e os irmãos não disseram uma palavra. E na manhã seguinte, depois da borrasca que os molhara todos, o sol erguera-se num céu limpo. Ao meio-dia a sua mãe soltara-o e chorara o lamento de todas as mulheres que perderam o seu companheiro. E ele saíra pela segunda vez com o Olha Longe para ir procurar o seu pai. Mas o mar já reclamara o que era seu. Voltara de mãos vazias, como um cachorro abandonado.
"Tu és o filho mais velho e tens o Olha Longe". E fora tudo o que a mãe lhe dissera. E era o suficiente. E ele tratara dos outros irmãos e dela. E quando a mãe morrera, tão mais cedo do que devia, entregou a casa à irmã recém-casada e fez uma para si."
Tens sempre tudo aparelhado quando cá chegamos, Pedro. Até me sinto mal". Vinham os dois a descer o areal, com as redes reparadas ao ombro. E ele esperou que o irmão e o cunhado chegassem até ele encostado ao Olha Longe. "É para teres força para puxares mais pelas redes à volta, Paulo". E riram-se os três. Depois, sem ser preciso dizer mais, empurraram o barco para a rebentação. As ondas brincaram sobre os seus pés num convite a que entrassem pela imensidão azul.
"Não vás ao mar hoje, Pedro". E ele olhou para trás. A sua mulher corria praia abaixo, a chamar pelo seu nome. Esperaram-na em silêncio, receosos, porque todos os presságios têm de ser bem estudados quando se entra numa casca de noz para dentro do oceano. Ela abraçou-o. Pedro perguntou-lhe baixinho, como se de coisa íntima de casal se tratasse: "Que foi, mulher?" E ela baixou os olhos enquanto lhe respondia no mesmo tom. "Doem-me os joanetes, o tempo vai mudar". Ele sorriu-lhe. "Para melhor, mulher. Para melhor". E abanou-a com ternura, soltando-a depois para segurar um cabo de largar."Que disse ela?" perguntou-lhe o irmão com uma ponta de receio. "Que lhe doem os joanetes", riu-se Pedro enquanto entrava no barco. E fizeram-se ao gigante. Pedro olhou para trás. A sua mulher estava a olhá-los da praia. Direita e abraçada a si mesma. Pedro teve medo. "Traz-me de volta para ela, barquinho" sussurrou ele para se confortar.

"O mar fala por nós". E foi esse o pensamento de Pedro enquanto remava em direcção ao local onde tinham largado as redes no dia anterior. "Três homens em silêncio no meio deste azul todo. É, o mar cala-nos e é ele que vai falando". E olhou para a costa, a pensar na sua mulher. "E às vezes calo-me quando ela quer conversa. Vou para casa e levo o oceano na cabeça, com os seus murmúrios e queixas. E eu fico calado".
Depois começaram a puxar as redes, o gigante foi pródigo na pescaria e Pedro esqueceu-se da sua meditação. Os olhos do seu cunhado até se riam só de ver tanto peixe. "Tem a mulher à espera", pensou Pedro com alegria. Ia ser o seu primeiro sobrinho. "E o meu também não tarda a vir". E pensou na mulher, como ficaria ela com o ventre cheio de vida.
O barco encheu depressa com o peixe a debater-se no fundo, agora todo coberto de reflexos prateados e viscosos. "Vamos soltar as outras redes e hoje vamos cedo para casa", disse Paulo. E pareceu a Pedro que esta frase ficou suspensa no ar, porque de um suspiro para outro o tempo mudou. O céu escureceu muito e em resposta as ondas tomaram-se mais altas e ariscas. O Olha Longe rangeu num aviso. "Rumamos para terra" disse Pedro preocupado.
Começaram a remar com energia. Mas o gigante não queria devolver logo a terra os seus convidados. E agora as ondas já entravam pelo barco e uma chuva fria começou a bater-lhes na face. O primeiro raio arrancou um "Deus me valha" ao seu cunhado, mas os seguintes já não os podiam assustar mais. "Onde está a costa, irmão?" Gritou-lhe Paulo por cima do ruído da tempestade. "Continua a remar para aí" apontou Pedro. "Como é que sabes?" e era o seu cunhado que perguntava, agora mais aflito. "Não sei" gritou Pedro. E apontou para a proa do barco. "É o Olha Longe que sabe". E o cunhado saltou para os remos tentando arrancá-los a Paulo. "Vocês estão loucos, não é para aí, não é para aí" gritava enquanto se debatia com o remador. Pedro saltou da popa para os soltar. Mas o gigante parecia estar à espera. Estavam de pé quando a onda os assaltou. Bateu com força no corpo deles, castigando-os e arrebanhando-os do barco. O irmão e o cunhado foram arrastados, mas um cabo enrolou-se às suas pernas e após o primeiro esticão da onda, Pedro ficou perto do barco. Em poucas braçadas regressou ao Olha Longe que estava cheio de água, tendo apenas a amurada acima da linha da água.Pedro começou a aliviá-lo. E lançou de novo o peixe ao mar, como que tentando aplacar o seu anfitrião. Depois começou a procurar o irmão e o cunhado. Ao fundo, quando uma onda o ergueu acima da linha do horizonte, viu um vulto. Remou para ele gritando como um louco. E pouco depois o seu irmão encontrava-se a tossir no fundo do Olha Longe. E Pedro levantou-se de novo, procurando encontrar o seu cunhado, que a sua irmã tinha um pequeno dele à espera para nascer e Pedro não lhe queria levar a notícia de que o seu filho viria ao mundo órfão.
Ao longe pareceu ver alguma coisa e remou para lá com o resto das suas forças. E era o seu cunhado que parecia inanimado. Pedro puxou-o para o barco e olhou-o. Estava cheio de água nos pulmões. Pedro começou a apertar-lhe a barriga para lha tirar. "Não o levas" disse enquanto quase desmaiava de cansaço "que eu ainda o hei-de ver brincar com o meu sobrinho à tua beira" e falava com o gigante, mas Paulo pensava que ele estava a rezar. E quando estava prestes a desistir, o cunhado tossiu e começou a respirar. Mas o gigante ainda tinha mais surpresas. E foram três as ondas que lançou sobre o Olha Longe.
Mas desta vez Pedro estava preparado. Tinha amarrado o cunhado ao barco e de proa para as ondas remou como um danado. E parecia a Paulo que o seu irmão enlouquecera, pois não percebia o que este dizia. "Tira-me do gigante, companheiro. Vira a proa para terra que és tu que estás ao leme." E Paulo estava muito cansado para responder que não estava ao leme, mas o irmão parecia não se importar. E hora após hora foi remando com uma força que nunca soubera ter. "Olha a promessa que fiz à minha mulher, barco!" E parecia a Paulo que o irmão estava a animar o Olha Longe. E por fim, quando já se via a praia, o gigante desistiu e o tempo pôs-se bom outra vez.
A mulher esperava-o quando a quilha do barco se fez à areia. Estava molhada da chuva e das lágrimas que uma pessoa tem no corpo e não sabe que são tantas. Ajudou-o a tirar o irmão e o cunhado e a levá-los para longe da rebentação. Depois abraçou-o com força. E Pedro levantou o punho para o mar. "Não me podes fazer mal, gigante". A mulher olhou-o assustada. "Não me podes fazer mal, que sou um homem completo. Tenho a minha mulher para viver e o meu barco para trabalhar". O mar não lhe respondeu e pareceu aquietar ainda mais. Pedro soltou-a e dirigiu-se à rebentação. "Onde vais?" perguntou ela assustada com a forma trôpega de ele andar e a forma como gritara. Ele virou-se. "Vou buscar o meu barco". E ela correu para ajudá-lo a arrastar o Olha Longe para terra.

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