segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Quando a Música Acabar



"Music is my only friend /
until the end..."

Jim Morrison



O vento rugia agora com mais força pela vila arruinada. A música não se ouvia por entre os gritos dementes do vendaval. Durante anos destruíra tudo o que era frágil. Agora alisava as arestas. O castelo resistia ainda e o branco caiado das casas era um lamentoso convite a que os seus habitantes regressassem. O violinista sabia que tinha perdido. Guardou cuidadosamente o seu instrumento ancião e afastou-se da povoação em ruínas. O vento gritou a sua vitória por entre vielas solitárias, pátios nus e ruas abandonadas.

Abandonou a vila a passos largos e apressados seguindo pela estrada em comida pelo tempo. A estrada feita de uma espécie de pedra negra e derretida, que o violinista não compreendia como fora feita. Aqui e ali, uma azinheira ou outra árvore furava a estrada. Contava-se na aldeia que os seus antepassados conduziam por ali carroças sem bois ou cavalos, a velocidades desmedidas. Isso, segundo os velhos da aldeia, fora antes dos homens terem solto sobre a terra grandes nuvens-monstros aos quais chamavam precipitação e que em alguns lugares ainda matavam quem por lá passasse com terríveis queimaduras.

Meditava, como fazia muitas vezes, sobre estes estranhos antepassados quando viu a casa solitária. Era grande, branca, com barras azuis já muito comidas pelo tempo e uma grande chaminé caída. Depois de a observar bem resolveu entrar. Fê-lo cuidadosamente pois muitos eram os perigos que se escondiam naqueles lugares desertos. O interior estava vazio, com a excepção do lixo que o vento ou pequenos animais tinham trazido. Deu alguns passos num dos compartimentos e sentiu o chão de madeira apodrecida fugir-lhe debaixo dos pés. Tomou-se de um enorme medo quando descobriu que tinha caído numa cave. As caves eram mais perigosas do que tudo o resto. Havia luminosidade suficiente para que, observando cuidadosamente visse as silhuetas de máquinas num dos cantos da cave. Quando finalmente a curiosidade substituiu o medo atreveu-se a explorar os aparelhos com umas mãos trémulas.

O botão esperara quase dois séculos que o acordassem. A pilha a que estava ligado guardara ciosamente os seus electrões aguardando o chamamento. Foram as mãos desastradas do violinista que accionaram o botão. Saltou para trás quando o prato começou a rodar e a pequena serpente de metal se ergueu, moveu-se suavemente pousou nele. Então aconteceu. A Primavera encheu a cave. Cinquenta e dois violinos inundaram e aspergiram o violinista. Quando o Verão substituiu a efémera Primavera o violinista chorava.

Depressa aprendeu a colocar o disco de plástico onde tinham prendido a música, e já uma fogueira iluminava a cave quando o violinista pegou no seu violino. Durante dois dias seguidos arranhou e tocou. Tocou e arranhou sem descanso até conseguir acompanhar os violinos encarcerados naquela máquina. Comeu o que restava das suas provisões e depois quase sem pensar dirigiu-se mais uma vez para a vila. Seguiu de novo a velha estrada e adormeceu enquanto caminhava. Sonhou com a amada que deixara na sua aldeia quando decidira procurar músicas pelo mundo. Sonhou com o seu pai que lhe deixara o violino que era um dos tesouros da aldeia. Sonhou com os antigos e com a loucura que os fizera perderem-se. Quando acordou estava perto da vila branca que se estendia por uma colina perto do rio. O vento, seu senhor, estava mais violento, mais louco do que antes. Ria-se maldoso pelas ruas, empurrava o adobe das paredes descascadas das casas e arrancava o que restava dos telhados. O violinista entrou.

Estava tão fatigado que deixou vento empurrá-lo pela ruas até chegar a uma praça. Sentou-se na base de uma fonte seca, com oito colunas e rasgada e pegou vagarosamente no violino. As suas mãos cansadas firmaram-se. O Outono gemeu nas mãos do violinista e o vento respondeu com assobios e gritos que viajavam pelas travessas, ruelas e escadarias. Sons perdidos nas casas acordavam agora para combater o homem e o seu instrumento. Encontraram o Inverno, que nas mãos do músico chamou tempestades e relâmpagos, antigas chuvas e neves suaves. Digladiaram-se dias e noites. Nasceram flores naquela vila fantasma, colheram-se frutos amadurecidos pelo sol, chuvas outonais brindaram os pátios da povoação e a fonte gelou com o frio de Dezembro. Já o terceiro dia se escondia atrás do manto da noite quando o vento derrotado fugiu da vila, gritando injúrias ao homem e aos seus aliados. O violinista largou o seu instrumento e sentiu-se morrer. Desejou sonhar com a sua amada enquanto perecia e assim aconteceu. O violino escorregou-lhe das pernas e pousou num tufo de ervas improvável, que ali crescera. Os bichos, que temiam a vila, vieram com suavidade, exploraram e finalmente acabaram por se deliciar com o violinista.

O violino ainda lá está. Flores começaram já a rodeá-lo, acariciando-o com ternura. O vento nunca mais voltou à vila. Apenas de quando em quando surge uma brisa doce que tange as suas cordas numa interrogação de saudade.

domingo, 18 de outubro de 2009

Os Escorpiões




O caçador paciente
Não teme
As horas.

A morte espera a um canto
Da manhã.
Como uma criança de cócoras.


Imagem de Giger.

Olha Longe






Acordou com o sol. Olha Longe estava assente na areia. Esperava-­o, como fazia todos os dias. Já fora de casa espreguiçou-se. As redes, lavadas na noite anterior, dançavam ao vento fresco da manhã. Virou o seu olhar para o mar. O gigante estava calmo. Era assim que o tratava. O gigante. Amava-o, mas respeitava-o ainda mais. Já lhe tinha levado o pai e dois irmãos. Mas era justo que assim fosse. Era o preço a pagar por lhe ir buscar o alimento às entranhas.
A areia estava fria e acariciava-lhe os tornozelos. De manhã todas as coisas lhe tocavam com mais intensidade. Dormira como um justo e deixara a sua mulher ainda a dormir. Desde o dia em que ela tinha vindo para sua casa que assim era. Saía sempre antes dela acordar. Era a mais bonita e a mais dura das mulheres da aldeia. "Não quero mourejar" tinha-lhe ela dito quando a desposara. "Não quero ser escrava do trabalho nem ficar feia e má muito cedo". E ele concordara. "E não quero que o mar te leve e me deixe amarga ainda jovem". Ele sorrira. "Enquanto tiver o Olha Longe nada tens a temer". Acreditara, como acreditava sempre em tudo o que se referisse ao Olha Longe. Todos os dias, quando ele voltava da faina, os músculos quebrados dos remos, das redes e dos aparelhos, e com a ajuda dos seus irmãos puxava o barco para o areal, ela agradecia ao Olha Longe terem regressado incólumes. Antes mesmo de ver a pescaria que tinham feito. E era um homem feliz, concluiu ele enquanto observava o sol a erguer-se por cima das montanhas e iluminar as linhas do seu barco.
O seu barco! Era um barco morto, quando o encontrara, ele mesmo ainda um miúdo. Mas gostara logo dele. Quando voltava com o pai e os irmãos da pesca, ia arranjá-lo assim que ficava livre. Os músculos moídos da faina e a chacota de toda a aldeia não o demoveram. Com o tempo, a arte com que o reconstruía foi reconhecida e ficavam a olhá-lo enquanto o arranjava. Até a sua mulher, naquela altura uma pintainha de palmo e meio. E fora ela que selara o elo que o ligava ao barco. Tinha dito, meio para lhe agradar, meio por intuição: "Parece que está vivo, só lhe faltam os olhos". E ele cismara naquilo. Quando o barco ficou pronto, pintou-lhe dois olhos grandes, que miravam o infinito, castanhos como os da sua mulher, e sábios, muito sábios. Sorriu. Lembrava-se de quando ela vira os olhos pintados na proa como se tivesse sido ontem. Andara muito tempo à volta do barco olhando-o como a um bicho que ali pousara. Riu-se, abanou a cabeça com a recordação e foi tratar das redes. Era necessário dobrá-las e metê-las no Olha Longe. O seu irmão e o cunhado deviam estar a chegar e era preciso arrear o barco.
Atirou as redes para o barco como fizera da primeira vez. Da primeira vez... Tinha-o arranjado, não era? Fora o que dissera ao pai. "Vou-me fazer ao mar nele. É o meu barco". E o pai dissera-lhe que fosse sozinho. E foi. E a pescaria que fizera!.. Parecia que estavam à espera que os apanhasse, os malditos dos peixes. Estava eufórico quando voltara. Queria mostrar a todos a sorte que o seu Olha Longe lhe trazia. Queria mostrar ao seu pai... E quando chegou todos o aclamaram. Mas o seu pai tinha ido para o mar com os seus dois irmãos. Encolhera os ombros e fôra tratar de vender o peixe.
A tarde foi passando e a festa deu lugar à apreensão. E a apreensão deu lugar à dor, quando a sua mãe se sentou à beira-mar esperando pela silhueta do barco. E um frio subiu-lhe espinha acima. Porque ele não fora no barco do seu pai e por isso a tragédia caíra sobre eles. Via nos olhos de toda a gente a sombra da acusação que ninguém fazia. Resolveu fazer-se ao mar outra vez para procurar o seu pai e irmãos.
"Onde vais tu, rapaz?" "Vou procurar o pai, mãe". E ela apontara para o céu com a dor estampada na cara. "Ó raios de rapaz, não vês o que vai cair sobre nós?" E ele olhara o céu. Estava negro de ameaças. "Vou buscá-los, mãe. Devia ter ido com eles..." Ela olhara-o com aqueles olhos de mãe conhecedora. "E é isso que te rói? Pois ouçam-me todos..." E erguera a voz para que todos ouvissem. "Ainda bem que este meu filho não foi, porque prefiro chorar três a quatro. E tu não me sais daqui". E prendera-o a ela, da única forma que uma mãe pode prender uma cria crescida que quer partir. Com a astúcia dos anos.
Foi a mais longa noite da sua vida. Sentados na praia, iluminados apenas pelos trovões, ele, a mãe e os irmãos não disseram uma palavra. E na manhã seguinte, depois da borrasca que os molhara todos, o sol erguera-se num céu limpo. Ao meio-dia a sua mãe soltara-o e chorara o lamento de todas as mulheres que perderam o seu companheiro. E ele saíra pela segunda vez com o Olha Longe para ir procurar o seu pai. Mas o mar já reclamara o que era seu. Voltara de mãos vazias, como um cachorro abandonado.
"Tu és o filho mais velho e tens o Olha Longe". E fora tudo o que a mãe lhe dissera. E era o suficiente. E ele tratara dos outros irmãos e dela. E quando a mãe morrera, tão mais cedo do que devia, entregou a casa à irmã recém-casada e fez uma para si."
Tens sempre tudo aparelhado quando cá chegamos, Pedro. Até me sinto mal". Vinham os dois a descer o areal, com as redes reparadas ao ombro. E ele esperou que o irmão e o cunhado chegassem até ele encostado ao Olha Longe. "É para teres força para puxares mais pelas redes à volta, Paulo". E riram-se os três. Depois, sem ser preciso dizer mais, empurraram o barco para a rebentação. As ondas brincaram sobre os seus pés num convite a que entrassem pela imensidão azul.
"Não vás ao mar hoje, Pedro". E ele olhou para trás. A sua mulher corria praia abaixo, a chamar pelo seu nome. Esperaram-na em silêncio, receosos, porque todos os presságios têm de ser bem estudados quando se entra numa casca de noz para dentro do oceano. Ela abraçou-o. Pedro perguntou-lhe baixinho, como se de coisa íntima de casal se tratasse: "Que foi, mulher?" E ela baixou os olhos enquanto lhe respondia no mesmo tom. "Doem-me os joanetes, o tempo vai mudar". Ele sorriu-lhe. "Para melhor, mulher. Para melhor". E abanou-a com ternura, soltando-a depois para segurar um cabo de largar."Que disse ela?" perguntou-lhe o irmão com uma ponta de receio. "Que lhe doem os joanetes", riu-se Pedro enquanto entrava no barco. E fizeram-se ao gigante. Pedro olhou para trás. A sua mulher estava a olhá-los da praia. Direita e abraçada a si mesma. Pedro teve medo. "Traz-me de volta para ela, barquinho" sussurrou ele para se confortar.

"O mar fala por nós". E foi esse o pensamento de Pedro enquanto remava em direcção ao local onde tinham largado as redes no dia anterior. "Três homens em silêncio no meio deste azul todo. É, o mar cala-nos e é ele que vai falando". E olhou para a costa, a pensar na sua mulher. "E às vezes calo-me quando ela quer conversa. Vou para casa e levo o oceano na cabeça, com os seus murmúrios e queixas. E eu fico calado".
Depois começaram a puxar as redes, o gigante foi pródigo na pescaria e Pedro esqueceu-se da sua meditação. Os olhos do seu cunhado até se riam só de ver tanto peixe. "Tem a mulher à espera", pensou Pedro com alegria. Ia ser o seu primeiro sobrinho. "E o meu também não tarda a vir". E pensou na mulher, como ficaria ela com o ventre cheio de vida.
O barco encheu depressa com o peixe a debater-se no fundo, agora todo coberto de reflexos prateados e viscosos. "Vamos soltar as outras redes e hoje vamos cedo para casa", disse Paulo. E pareceu a Pedro que esta frase ficou suspensa no ar, porque de um suspiro para outro o tempo mudou. O céu escureceu muito e em resposta as ondas tomaram-se mais altas e ariscas. O Olha Longe rangeu num aviso. "Rumamos para terra" disse Pedro preocupado.
Começaram a remar com energia. Mas o gigante não queria devolver logo a terra os seus convidados. E agora as ondas já entravam pelo barco e uma chuva fria começou a bater-lhes na face. O primeiro raio arrancou um "Deus me valha" ao seu cunhado, mas os seguintes já não os podiam assustar mais. "Onde está a costa, irmão?" Gritou-lhe Paulo por cima do ruído da tempestade. "Continua a remar para aí" apontou Pedro. "Como é que sabes?" e era o seu cunhado que perguntava, agora mais aflito. "Não sei" gritou Pedro. E apontou para a proa do barco. "É o Olha Longe que sabe". E o cunhado saltou para os remos tentando arrancá-los a Paulo. "Vocês estão loucos, não é para aí, não é para aí" gritava enquanto se debatia com o remador. Pedro saltou da popa para os soltar. Mas o gigante parecia estar à espera. Estavam de pé quando a onda os assaltou. Bateu com força no corpo deles, castigando-os e arrebanhando-os do barco. O irmão e o cunhado foram arrastados, mas um cabo enrolou-se às suas pernas e após o primeiro esticão da onda, Pedro ficou perto do barco. Em poucas braçadas regressou ao Olha Longe que estava cheio de água, tendo apenas a amurada acima da linha da água.Pedro começou a aliviá-lo. E lançou de novo o peixe ao mar, como que tentando aplacar o seu anfitrião. Depois começou a procurar o irmão e o cunhado. Ao fundo, quando uma onda o ergueu acima da linha do horizonte, viu um vulto. Remou para ele gritando como um louco. E pouco depois o seu irmão encontrava-se a tossir no fundo do Olha Longe. E Pedro levantou-se de novo, procurando encontrar o seu cunhado, que a sua irmã tinha um pequeno dele à espera para nascer e Pedro não lhe queria levar a notícia de que o seu filho viria ao mundo órfão.
Ao longe pareceu ver alguma coisa e remou para lá com o resto das suas forças. E era o seu cunhado que parecia inanimado. Pedro puxou-o para o barco e olhou-o. Estava cheio de água nos pulmões. Pedro começou a apertar-lhe a barriga para lha tirar. "Não o levas" disse enquanto quase desmaiava de cansaço "que eu ainda o hei-de ver brincar com o meu sobrinho à tua beira" e falava com o gigante, mas Paulo pensava que ele estava a rezar. E quando estava prestes a desistir, o cunhado tossiu e começou a respirar. Mas o gigante ainda tinha mais surpresas. E foram três as ondas que lançou sobre o Olha Longe.
Mas desta vez Pedro estava preparado. Tinha amarrado o cunhado ao barco e de proa para as ondas remou como um danado. E parecia a Paulo que o seu irmão enlouquecera, pois não percebia o que este dizia. "Tira-me do gigante, companheiro. Vira a proa para terra que és tu que estás ao leme." E Paulo estava muito cansado para responder que não estava ao leme, mas o irmão parecia não se importar. E hora após hora foi remando com uma força que nunca soubera ter. "Olha a promessa que fiz à minha mulher, barco!" E parecia a Paulo que o irmão estava a animar o Olha Longe. E por fim, quando já se via a praia, o gigante desistiu e o tempo pôs-se bom outra vez.
A mulher esperava-o quando a quilha do barco se fez à areia. Estava molhada da chuva e das lágrimas que uma pessoa tem no corpo e não sabe que são tantas. Ajudou-o a tirar o irmão e o cunhado e a levá-los para longe da rebentação. Depois abraçou-o com força. E Pedro levantou o punho para o mar. "Não me podes fazer mal, gigante". A mulher olhou-o assustada. "Não me podes fazer mal, que sou um homem completo. Tenho a minha mulher para viver e o meu barco para trabalhar". O mar não lhe respondeu e pareceu aquietar ainda mais. Pedro soltou-a e dirigiu-se à rebentação. "Onde vais?" perguntou ela assustada com a forma trôpega de ele andar e a forma como gritara. Ele virou-se. "Vou buscar o meu barco". E ela correu para ajudá-lo a arrastar o Olha Longe para terra.

Sem Fantasia

É um assim inclinar
De cabeça, formoso
Quando te beijo o pescoço
Que aprendi a amar.

O resto é belo e profundo
E sem querer ser conciso
Sei que amo o que no fundo
Se esconde no teu sorriso.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

NUM LOCK





Encontrado mais uma vez a exibir pensamentos proibidos, as gentes juntaram-se e, perfidamente vergastaram as minhas costas mentais com olhares penetrantes como agulhas. E amarraram o meu pensamento a uma árvore, atormentando-o com ameaças de lobotomia. Com uma certeza trazida do inconsciente puro falei-lhes de ti, das tuas faces belas e dos teus olhos carinhosos. Foi o suficiente para que, mais docemente compreendessem a minha loucura inerente a existir.


Não sei se me perdoaram mas creio que irão perguntar-te se o meu corpo flagelado te agrada.

Estranhas Criaturas Sob os Céus de Mértola nº 25




Sapatos altos de verniz. Mala de viagem de plástico verde tropa envelhecida. Cansaço no andar e nas ancas. Redondas. Olhar perdido mas vivo. Camisola de malha aberta com botões de madeira. Vermelha. Uma boca pequena mas carnuda. Mulher bonita. Ninguém sabe como chegou. Inquiridos posteriormente, os motoristas do expresso não a recordam. Não é de estranhar. Existe a possibilidade de ter chegado de autocarro, embora as horas não coincidam. Apurou-se na Beira-Rio que entrou às catorze e trinta e alugou um quarto. Não jantou ali. Desconhece-se o que fez até às vinte e duas horas. Um empregado da Câmara pensa tê-la visto no cais a olhar o Guadiana pelas dezoito. É também referido que o mesmo funcionário já não se encontrava de serviço e que iam para sete as Sagres bebidas, o que diminui a legitimidade do seu testemunho. No bar Lancelote confirma-se a sua chegada às vinte e duas aproximadamente. Pediu um copo de vinho tinto e não havendo de momento, substituiu o pedido por um licor beirão. Sentou-se sozinha. Às vinte e duas e dezanove um grupo de habitantes masculinos da vila, com idades compreendidas entre os dezassete e os trinta e dois anos entrou no Lancelote. Conta quem sabe que pediram imperiais. Eram cinco. Olharam-na com agrado e um piropo de qualidade duvidosa, mas que elogiava a sua beleza, foi lançado. Ela olhou-os friamente e desinteressada. O grupo sentou-se a três mesas de distância ao mesmo tempo que um outro grupo entrava. Foram chegando mais pessoas e é justo notar um estrangeiro solitário que entrou meio perdido. Falou em inglês. Pediu um porto. Mais tarde o proprietário do Lancelote diria que pela pronúncia e pelo pedido seria capaz de apostar que o estrangeiro era um bife. Conta quem lá esteve que não tirou os olhos dela até se sentar numa mesa. Numa outra altura e à frente de um copo de Cardhu, o proprietário do Lancelote diria que deveriam estar cerca de vinte e três pessoas no bar quando a coisa se deu. Ela fez-lhe sinal e perguntou se podia cantar. Ao receber um aceno afirmativo, entregou um CD. Seriam por esta altura vinte e duas e quarenta e pouco. Ninguém notou até que ela se ergueu. Pigarreou e acendeu um cigarro. Puxou a cabeça atrás e a sua voz abriu-se como uma estrela incandescente. Toda a gente foi apanhada de surpresa. O silêncio que se seguiu à sua primeira frase foi pungente. “Só a saudade tem rosto”, cantou e toda a gente ficou atordoada. O relato possível conta que um copo foi largado por uma mão subitamente enfraquecida e estilhaçou-se no chão sem fazer qualquer ruído. Lágrimas forçaram as pálpebras de um habitante que não chorava, diz quem sabe, há mais de dezoito anos. Uma rapariga desligou o telemóvel que nunca abandonava. Alguém pressentiu a sua própria morte e não sentiu qualquer medo. Um casal de namorados viu asas nas costas de um homem que bebia uma imperial sozinho. O estrangeiro levou a mão ao peito e abriu muito os olhos como se tivesse encontrado um tesouro há muito perdido. Sabe-se com segurança que ela apenas cantou duas canções e depois se foi embora, provavelmente sem pagar. O proprietário do Lancelote não tem certeza nem lhe interessa. O estrangeiro ergueu-se e seguiu-a cambaleando. Afirma convicto, o proprietário do Lancelote, que quando se voltou a mexer do local onde ficara estarrecido, eram já vinte e três horas e vinte e cinco minutos. Diz também que foi o primeiro a ganhar acção. Quem dos presentes diz qualquer coisa sobre o sucedido fá-lo sempre aos soluços, pasmado. Impossível de comprovar foi a remissão de cancro dos pulmões de um dos vinte e três envolvidos, embora ele afirme haver uma ligação com o sucedido. Estranhamente, para uma vila como Mértola, a história resiste a passar de boca em boca, ainda incrível, assombrosa, ténue.

“Sodade?” “Sim?” “Sodade?” “Sim.” “Como ser?” “O quê?” “Sodade.” “Não fala português?” “Poco.” “E então?” “Sodade.” “É uma goteira de sangue que nos bate nas entranhas, lentamente, que não pára nem nos deixa esquecer.” “Missing?” “Não falo inglês. Só falo fado.” “Fado?” “É angustia.” “Comprender.” “Não compreende nada.” “Nao?” “Saudade sente-se quando estamos para sair e ainda não o fizemos. Começa antes e não acaba com o reencontro. É sentir-se uma perda sem termos perdido nada.” “Ser o fado?” “É a essência do fado.” “Como sentir sodade?” “É uma maldição doce. É uma maldição portuguesa.” “Só português pode sentir?” “Não. Mas tem que se ser tocado por Portugal.” “Como?” “Porque é que quer sentir saudade?” “Amália.” “Rodrigues?” “Yes. Ouvir Amália e aprender português. Sentir algo estranho.” “Na barriga?” “Yes. Uma falta. Um tristeza sem razão.” “Ah!” “O que ser?” “É um princípio. Você pode ser infectado.” “Infectado?” “Com a saudade. Venha. Vou infectá-lo com o meu mal.” “Mal?” “Sim. Venha comigo. Durma comigo. Vou-lhe dar sal. Vou-lhe dar sul e sol e depois quando lhe fizer falta, muita falta, vou abandoná-lo à saudade.” “Bom. Bom. Obrigade.” “Pobrezinho. Venha.”

Quando o avião levanta voo, abandonamos algo como quem abandona uma casa. Não, abandonamos um lar, pensou ele. Olhou para baixo. Lisboa com as suas casas de várias cores diminuía, tornando-se num brinquedo. Uma ansiedade trespassou-o. Onde estaria ela? Olhou para sul. Ou o que julgava ser sul. Mértola. Beleza e tristeza. Saudade. Sorriu. Fechou os olhos e reviu a melhor experiência da sua vida. Sal de Portugal. Suor. Gemidos estrangeiros. Fado do corpo. Já não era completamente inglês. Tinha sido infectado. Pensou em todas as terras onde sabia que existia saudade. O Brasil. Toda a África que falava português. Outros sítios. Infectados por uma doença benigna e sexualmente transmissível. A saudade. “I’m not me anymore.” Disse alto. Ninguém olhou para ele. Teve uma vontade dolorosa de palmilhar as ruas de Mértola, de ouvir fado, de beber uma cerveja gelada. Quase lhe doeu fisicamente. “Pobrezinho.” Tinha ela dito. E como é que aquela gente toda aguentava? Olhou pela janela. Queria voltar para trás. Tirou o diskman do saco. Pôs os auscultadores nos ouvidos. Ligou-o. A Amália encheu-lhe a cabeça. Foi por vontade de deus, que eu vivo nesta ansiedade. Sorriu. O fado é saudade. Mas também é remédio para a saudade. Entregou-se à tristeza portuguesa. O avião galgou mais uma nuvem em direcção a Londres. A Amália pungente, veloz nos céus, a espalhar por todo o seu corpo a infecção.

Em Mértola ou Noutro Sítio Qualquer



Um carro vem a descer a rua. Um carro vem a descer a rua e quase preguiçosamente faz uma curva. Do seu lado direito as laranjeiras passam cadenciadas já em flor. É Abril e o calor no asfalto faz-se sentir como promessa dos meses que virão. Ao fundo da rua uma rotunda com oito colunas de tamanhos diversos dentro de uma fonte. Normalmente esguicha água de um cano que rompe do centro das colunas. Mas neste momento não. Estão secas. É princípio de tarde e os pássaros cantam sobre a vila. Cheira a flor de laranjeira e um vento suave lambe a folhagem verde escura. Um carro vem a descer a rua. Sem muita pressa.

"Já não me amas." "Amo sim." Já não sorris para mim." "Claro que sorrio." "Dantes estavas sempre a sorrir. Agora já não." "Sorrio. Ainda sorrio." "Só sorris para o nosso filho. Só te vejo sorrir para ele." "Não é verdade." "Estavas sempre a rir-te. Com todas as parvoíces que eu dizia." "Não tens feito brincadeiras." "Deixei de as fazer porque tu deixaste de te importar." "Não é verdade, devias continuar." "Para quê?" "Alegra-me quando brincas comigo." "Não se nota." "Não sejas assim. Vem cá." "Tu não estás excitada." "Então excita-me."

Um carro vem a descer a rua. Um carro vem a descer a rua e não vem depressa. No banco de trás, numa cadeira bem presa, está um menino. Tem pouco mais do que um ano. Está a olhar para as laranjeiras. Os seus olhos rolam em direcção à sua mãe. Abre a boca preguiçosamente, com sono e calor. Diz mãe.Ela olha para trás com um sorriso surpreso estampado na cara. O seu filho falou pela primeira vez. Fica com o coração a rebentar de amor e ternura.Um carro vem a descer a rua. Não vai depressa e aproxima-se de uma passadeira que antecede de imediato a rotunda.

"Antigamente, mal te tocava, os teus mamilos ficavam rijos." "Ainda ficam." "Olha… Não ficam." "Tem paciência." "E não tenho tido?" "Esforça-te um bocadinho mais." "Que mais tenho eu feito?" "Sim, tens-te esforçado." "Parece que tenho andado a fazer amor sozinho este tempo todo." "Porque é que insistes em dizer isso?" "É o que sinto." "Como é que queres que me sinta bem se sempre que vamos para a cama me acusas de não te amar?" "É o que sinto." "Preciso que me ajudes e compreendas." "Não me deixas ajudar-te." "Deixo, pois. Dá-me tempo." "Eu dou. Que remédio tenho eu." "Abraça-me." "Abraçar ajuda-te?" "Nem sabes quanto." "Continuas sem sorrir." "Eu sorrio. Eu sorrio".

Um carro vem a descer a rua. Durante três segundos uma mãe olhou embevecida para o seu filho e para a primeira palavra que ele disse. Depois sentiu o embate do seu carro. Como uma coisa suave. Como um toque gentil no ombro. Olhou para a frente de repente, torcendo o pescoço com tanta força que lhe doeu. Uma camisa de alças cor-de-rosa, longos cabelos castanhos erguem-se no ar.Os pés rápidos no travão tarde demais.Uma sandália bate contra o capot do carro. A figura de uma rapariga cai e sossega sobre a passadeira.Um carro vinha a descer a rua e agora está parado. Um bebé começa a chorar.

"Estás gelada. Estás gelada por dentro e por fora." "Aquece-me." "Como? Não sei como…" "Sabes. Tens de saber." "Explica-me." "Não sei. Mas és tu que tens de saber." "Ainda gostas disto?" "Gosto. Gosto muito." "E disto?" "Sim." "Não parece." "Mas tu continuas com isso?" "Desculpa." "Beija-me." "Se eu te beijar, fazes-me um favor?" "Sim." "Sorris para mim?" "Sorrio. Eu estou sempre a sorrir para ti. Mesmo que não se veja." "Mas eu preciso de ver." "Está bem."

Um carro vinha a descer a rua. Um carro vinha a descer a rua e parou repentinamente com um guincho agudo e um cheiro a pneus queimados. Há uma rapariga caída sobre as listras pretas e brancas da passadeira. Casualmente a fonte começa a esguichar água. Um bebé chora. A mãe abre a porta do carro e tenta sair. Esqueceu-se de tirar o cinto. Enquanto o faz olha para trás. O seu filho está bem. Chora de medo apenas. Sai do carro com as pernas a tremer. Dirige-se para a rapariga enquanto várias pessoas também se aproximam. A rapariga parece estar a olhar para o céu.Um carro está parado à beira de uma passadeira à beira de uma rotunda. Vinha a descer a rua.

"Não me sentes." "Sinto." "Mas não o demonstras." "Se não paras de falar, como é que queres que sinta?" "Ainda não sorriste." "Espera um pouco." "Espero. É o que faço sempre." "Não pares, por favor." "Eu não paro. Eu continuo." "Meu amor…" "Estás a chorar?" "Não é nada. Continua, não vá ele acordar." "Sorri, vá lá…" "Eu sorrio. Em breve eu sorrio." "Sorri, sorri, meu amor…"

Um carro vinha a descer a rua. Um carro vinha a descer a rua e já não se move. A polícia chegou. Alguém segura a mãe. Uma rapariga tirou o bebé do carro e embala-o, mas não o convence a calar-se. A mãe olha para a rapariga imóvel no asfalto. A rapariga que atropelou. Está morta. Um fio de sangue parou de escorrer-lhe pela boca abaixo. Os olhos fitam um céu que já não vê. A sua cara imobilizou-se com serenidade. Num sorriso.