sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Estranhas Criaturas Sob os Céus de Mértola nº 25




Sapatos altos de verniz. Mala de viagem de plástico verde tropa envelhecida. Cansaço no andar e nas ancas. Redondas. Olhar perdido mas vivo. Camisola de malha aberta com botões de madeira. Vermelha. Uma boca pequena mas carnuda. Mulher bonita. Ninguém sabe como chegou. Inquiridos posteriormente, os motoristas do expresso não a recordam. Não é de estranhar. Existe a possibilidade de ter chegado de autocarro, embora as horas não coincidam. Apurou-se na Beira-Rio que entrou às catorze e trinta e alugou um quarto. Não jantou ali. Desconhece-se o que fez até às vinte e duas horas. Um empregado da Câmara pensa tê-la visto no cais a olhar o Guadiana pelas dezoito. É também referido que o mesmo funcionário já não se encontrava de serviço e que iam para sete as Sagres bebidas, o que diminui a legitimidade do seu testemunho. No bar Lancelote confirma-se a sua chegada às vinte e duas aproximadamente. Pediu um copo de vinho tinto e não havendo de momento, substituiu o pedido por um licor beirão. Sentou-se sozinha. Às vinte e duas e dezanove um grupo de habitantes masculinos da vila, com idades compreendidas entre os dezassete e os trinta e dois anos entrou no Lancelote. Conta quem sabe que pediram imperiais. Eram cinco. Olharam-na com agrado e um piropo de qualidade duvidosa, mas que elogiava a sua beleza, foi lançado. Ela olhou-os friamente e desinteressada. O grupo sentou-se a três mesas de distância ao mesmo tempo que um outro grupo entrava. Foram chegando mais pessoas e é justo notar um estrangeiro solitário que entrou meio perdido. Falou em inglês. Pediu um porto. Mais tarde o proprietário do Lancelote diria que pela pronúncia e pelo pedido seria capaz de apostar que o estrangeiro era um bife. Conta quem lá esteve que não tirou os olhos dela até se sentar numa mesa. Numa outra altura e à frente de um copo de Cardhu, o proprietário do Lancelote diria que deveriam estar cerca de vinte e três pessoas no bar quando a coisa se deu. Ela fez-lhe sinal e perguntou se podia cantar. Ao receber um aceno afirmativo, entregou um CD. Seriam por esta altura vinte e duas e quarenta e pouco. Ninguém notou até que ela se ergueu. Pigarreou e acendeu um cigarro. Puxou a cabeça atrás e a sua voz abriu-se como uma estrela incandescente. Toda a gente foi apanhada de surpresa. O silêncio que se seguiu à sua primeira frase foi pungente. “Só a saudade tem rosto”, cantou e toda a gente ficou atordoada. O relato possível conta que um copo foi largado por uma mão subitamente enfraquecida e estilhaçou-se no chão sem fazer qualquer ruído. Lágrimas forçaram as pálpebras de um habitante que não chorava, diz quem sabe, há mais de dezoito anos. Uma rapariga desligou o telemóvel que nunca abandonava. Alguém pressentiu a sua própria morte e não sentiu qualquer medo. Um casal de namorados viu asas nas costas de um homem que bebia uma imperial sozinho. O estrangeiro levou a mão ao peito e abriu muito os olhos como se tivesse encontrado um tesouro há muito perdido. Sabe-se com segurança que ela apenas cantou duas canções e depois se foi embora, provavelmente sem pagar. O proprietário do Lancelote não tem certeza nem lhe interessa. O estrangeiro ergueu-se e seguiu-a cambaleando. Afirma convicto, o proprietário do Lancelote, que quando se voltou a mexer do local onde ficara estarrecido, eram já vinte e três horas e vinte e cinco minutos. Diz também que foi o primeiro a ganhar acção. Quem dos presentes diz qualquer coisa sobre o sucedido fá-lo sempre aos soluços, pasmado. Impossível de comprovar foi a remissão de cancro dos pulmões de um dos vinte e três envolvidos, embora ele afirme haver uma ligação com o sucedido. Estranhamente, para uma vila como Mértola, a história resiste a passar de boca em boca, ainda incrível, assombrosa, ténue.

“Sodade?” “Sim?” “Sodade?” “Sim.” “Como ser?” “O quê?” “Sodade.” “Não fala português?” “Poco.” “E então?” “Sodade.” “É uma goteira de sangue que nos bate nas entranhas, lentamente, que não pára nem nos deixa esquecer.” “Missing?” “Não falo inglês. Só falo fado.” “Fado?” “É angustia.” “Comprender.” “Não compreende nada.” “Nao?” “Saudade sente-se quando estamos para sair e ainda não o fizemos. Começa antes e não acaba com o reencontro. É sentir-se uma perda sem termos perdido nada.” “Ser o fado?” “É a essência do fado.” “Como sentir sodade?” “É uma maldição doce. É uma maldição portuguesa.” “Só português pode sentir?” “Não. Mas tem que se ser tocado por Portugal.” “Como?” “Porque é que quer sentir saudade?” “Amália.” “Rodrigues?” “Yes. Ouvir Amália e aprender português. Sentir algo estranho.” “Na barriga?” “Yes. Uma falta. Um tristeza sem razão.” “Ah!” “O que ser?” “É um princípio. Você pode ser infectado.” “Infectado?” “Com a saudade. Venha. Vou infectá-lo com o meu mal.” “Mal?” “Sim. Venha comigo. Durma comigo. Vou-lhe dar sal. Vou-lhe dar sul e sol e depois quando lhe fizer falta, muita falta, vou abandoná-lo à saudade.” “Bom. Bom. Obrigade.” “Pobrezinho. Venha.”

Quando o avião levanta voo, abandonamos algo como quem abandona uma casa. Não, abandonamos um lar, pensou ele. Olhou para baixo. Lisboa com as suas casas de várias cores diminuía, tornando-se num brinquedo. Uma ansiedade trespassou-o. Onde estaria ela? Olhou para sul. Ou o que julgava ser sul. Mértola. Beleza e tristeza. Saudade. Sorriu. Fechou os olhos e reviu a melhor experiência da sua vida. Sal de Portugal. Suor. Gemidos estrangeiros. Fado do corpo. Já não era completamente inglês. Tinha sido infectado. Pensou em todas as terras onde sabia que existia saudade. O Brasil. Toda a África que falava português. Outros sítios. Infectados por uma doença benigna e sexualmente transmissível. A saudade. “I’m not me anymore.” Disse alto. Ninguém olhou para ele. Teve uma vontade dolorosa de palmilhar as ruas de Mértola, de ouvir fado, de beber uma cerveja gelada. Quase lhe doeu fisicamente. “Pobrezinho.” Tinha ela dito. E como é que aquela gente toda aguentava? Olhou pela janela. Queria voltar para trás. Tirou o diskman do saco. Pôs os auscultadores nos ouvidos. Ligou-o. A Amália encheu-lhe a cabeça. Foi por vontade de deus, que eu vivo nesta ansiedade. Sorriu. O fado é saudade. Mas também é remédio para a saudade. Entregou-se à tristeza portuguesa. O avião galgou mais uma nuvem em direcção a Londres. A Amália pungente, veloz nos céus, a espalhar por todo o seu corpo a infecção.

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